sexta-feira

faltam apenas duas horas para ele chegar. nessa manhã tudo parecia surreal. o espelho reflectia uma imagem mais bonita que o usual, os ponteiros do relógio pareciam arrastar-se mais lentamente que o habitual, até o pequeno-almoço se revelava mais saboroso que normalmente. tudo apontava para um dia maravilhoso. os pássaros, pequenas criaturas que sempre aparecem quando se quer transmitir uma ideia de felicidade, cantavam lá fora, as árvores impediam que o calor reinasse nos passeios, e lá está, a sombra não era sinónimo de infortúnio, até porque o sol continuava lá. Escondido por detrás das árvores, mas continuava lá, espreitando de vez em quando, não fossem os humanos ignorar a sua extrema importância para a sua vivência. o café hoje não está muito cheio. está uma mulher a comprar o pão do costume, são 15 pães, porque tem dois filhos e um marido para alimentar, está o mecânico do lado a tomar o café antes de abrir o seu negócio e consertar umas latas velhas, está aquela idosa de aspecto adorável a tentar perceber se aquilo que tem à sua frente é a cevada que pediu ou se aquela empregada mal encarada se enganou. é a cidade no seu estado mais normal. e faltam apenas duas horas. ele vai chegar dentro de duas horas, vão cumprimentar-se e olhar-se nos olhos, sem saber muito bem que dizer. vão soltar-se algumas palavras típicas, vão iniciar-se curtas conversas desinteressantes sobre o tempo e sobre o último anúncio que passou na televisão do café. nada mais vai sair, nada mais vai fazer alguém sorrir. ele chegou há doze minutos exactamente, tomaram um café. agora olham para as horas e não sabem que fazer. o verão tem destas coisas, faz acelerar corações, faz palpitar sentimentos, e faz secar bocas. talvez por isso as palavras faltassem. agora estão a caminhar na rua, têm medo de se aproximar demasiado. as semelhanças com simples familiares não são descabidas. mas a insegurança nos olhos dele é suficiente para gerar alguns sorrisos das duas fêmeas que vão a passar. elas sim, percebem e sabem o que devia acontecer. mas não acontecem. vão a descer a avenida onde entraram. a casa dele é ali, o 3145, que tem o pinheiro no jardim da frente e o telhado preto com uma varanda no segundo andar que tem um vaso com um girassol. aquele é o quarto dele. o portão não se fez de rogado a abrir, como se quisesse dar um empurrão ao que devia acontecer. mesmo o portão parecia saber mais, como as fêmeas que antes passaram na rua. sentaram-se no sofá. são três da tarde, os sorrisos são envergonhados e a tese do embaraço foca-se cada vez mais em complicar as palavras que deviam sair da boca. ele tirou o casaco, foi à cozinha buscar um copo de sumo. ligou a televisão. está a dar um filme de drama. voltou a sentar-se no sofá. continuam ali, frios e sem reacção, como se de mortos de tratassem à espera que a vida lhes caísse do céu. não há saídas possíveis. ele virou o rosto. olharam-se nos olhos. ele perguntou "é isto que queres?". ele sabia a resposta, mas queria uma certeza. "sim". a certeza chegou, mas não trouxe consigo palavras nem sorrisos. as mãos aproximavam-se. deram as mãos. foi o empurrão necessário. voltaram a olhar-se nos olhos. deu-se a celebração do amor. beijaram-se finalmente, como se consumassem uma vontade que durava desde o primeir instante. a televisão era mera espectadora da paixão. estavam mais próximos que nunca, e por próximos entenda-se uma proximidade tal que nada caberia entre aqueles dois corpos. o calor fazia a emoção fervilhar. os anjos cantavam "aleluia". ele bradava aos céus secretamente o mesmo. tudo era perfeito. ele foi para o quarto. foram.  alguém irrompeu pela porta entreaberta do quarto, num impulso ele olhou. era a mãe, tinha acabado de chegar e ouvira algo proveniente daquele quarto. ela não queria acreditar no que via, ele cobria a vergonha com a roupa. a mãe perguntava-se onde tinha errado. mas cedo percebeu que o seu erro era a falta de atenção. abraçou o filho. pediu desculpa. mas as desculpas não eram motor suficiente para travar a ira do pai que a seguira. para ele era inaceitável. expulsou-o de casa imediatamente. ele saiu. saíram. agora não tinha onde ficar. a mãe saiu logo atrás, não ia abandonar o seu único filho. não ia deixá-lo perder-se no mundo. seguiu-os. percebeu que o amor que os unia era maior que qualquer opinião contrária do marido. levou-os para casa, afirmou-se. afinal era a casa dela, tudo dela. o amor venceu. não por muito tempo. continuava inaceitável. era duro ver um filho ser algo que nunca quisera. pegou no carro e conduziu, depressa, para deixar rapidamente os problemas para trás. o cantil de whisky dentro do porta-luvas era o seu melhor amigo. mas a curva perigosa à esquerda que o matou 5 minutos depois foi a última amiga que o recolheu no seu abraço.

ele está a chegar. vão encontrar-se e não se vão importar com a idosa de ar doce, com o mecânico ou com a dona de casa. hoje são um do outro. hoje vão almoçar com a mãe dele. ele, joão. com ele, daniel.

1 comentário:

Beky disse...

Ha pessoas que ainda não percebem como pode ser mortal a intolerância. Mortal para quem a pratica e para quem dela sofre.
Obrigada por mostrares isso ao mundo.