sábado

Inverno

Inverno.
Desesperante.

Choviam pequenas gotas que, inexplicavelmente, eram pretas. Num único olhar, percorri aquela rua apinhada de almas à procura de alguém que me pudesse ajudar. Não, estavam todos mortos. Ninguém olhava, ninguém sorria, ninguém falava. O que era uma rua, transformou–se subitamente num pequeno caminho de terra batida, que atravessava uma longa floresta de árvores médias e altas.

Ouviam–se
gritos de desespero, dor, aflição, medo. Não me atrevi a tentar descobrir o que se passava, era demasiado assustador. Eis que os gritos pararam. Um homem saiu do meio das árvores. Não tinha cabeça, das suas mãos escorriam rios de sangue, e fugiu, deixando um rasto de horror atrás de si. Mas... teria sido aquele homem a gritar? Não, eram gritos de mulher. Tinha a certeza disso. Algo se mexeu atrás de mim. Corvos pretos voaram, enxotados por algo que temeram. A adrenalina começou a acelerar o meu coração. A vontade de roer as unhas como forma de afugentar o terror que sentia era enorme, tanto como a vontade de fugir.

Uma mão fria e delicada tocou–me nas costas. Petrificou–me. Não me conseguia mexer. Alguém sussurrava no meu ouvido palavras encorajadoras. Então, virei–me lentamente. Ninguém estava lá. Teria sido mera imaginação? Continuei o meu caminho com este pensamento a moer–me horas de viagem. Uma rajada de vento arrastou consigo as últimas folhas que ainda restavam nas árvores já semi-nuas. A paisagem desencorajava qualquer um, tal era o desespero que as árvores pareciam carregar. Não, não podia perder tempo naquilo. Tinha que encontrar a minha casa. Uma orientação. Ouve–se um tiro lá longe, perto do rio. Um tiro que faz eco, e um eco que parecia atravessar os meus intestinos, dava uma sensação horrível. Não, nem isto me poderia fazer parar. Não podia acreditar! Fiquei estupefacto quando vi que tinha chegado à minha cidade. Mas não se via ninguém. A chuva preta, que tinha parado, voltou, desta vez ainda mais carregada de dor, sofrimento. Seria possível que... Não, não. Mas para ter certeza, fui verificar.

O cenário era horrível. As minhas piores previsões tinham acontecido. Todas as ruas deviam estar cobertas de neve branca, o habitual num Inverno frio como aquele. Mas não. Uma estava totalmente vermelha. Baixei–me. O que seria aquilo vermelho? Antes que o pudesse descobrir, um rapazinho, com os seus trémulos 5 ou 6 anos correu na minha direcção. O horror estava patente nos braços e fortemente me abraçaram, nas palavras sem nexo que dizia, no tremor dos seus pés descalços e frios. Era sangue. A rua estava completamente cheia de sangue. Fiz–me acompanhar do pequeno rapaz, tinha pena dele. O cenário com que nos deparamos era ainda mais dramático. Um cemitério de corpos ao ar livre. Alguns já putrefactos, uns ainda respiravam desesperadamente, tentando escapar à morte, e os outros, eram cadáveres há horas. Tapei os olhos ao João, não sabia se esse era o seu nome, mas ele precisava de um.

Começava a ficar chocado. A minha aldeia, colorida e cheia de vida, era agora palco da maior carnificina que alguma vez tinha visto. Entre as muitas vítimas do banho de sangue, encontrei alguém conhecido. Era a pessoa que mais amava. E agora, estava morta. Não aguentei em pé. Dei ao pequeno João todos os valores que tinha comigo e disse–lhe para correr o mais que pudesse até encontrar alguém. Esperei até o ver desaparecer no horizonte. Foi aí que vi que tinham arrancado o coração à minha amada. No bolso do meu sobretudo tinha um pequeno canivete. A minha vida não fazia mais sentido sem ela. Arranquei o meu coração, caí ao lado dela. Tinha um sorriso nos lábios, pois tinha morrido com ela, ao lado dela.

Sabia que iríamos ficar juntos para sempre.

Um barulho infernal começou a soar nos meus ouvidos. Estando eu morto, como é que podia ouvir?
- Luís, anda, acorda, vais chegar atrasado à escola!
Tinha sido um sonho. Mas, para confirmar telefonei-lhe. Estava viva. Acho que nunca estive tão feliz na minha curta vida. O que dantes era uma aldeia morta e fria, tinha voltado ao normal e era agora a minha aldeia colorida de sempre.


Inverno? Não, era Verão, calor.
E eu?
Tenho uma cicatriz no peito.

1 comentário:

Anónimo disse...

Luis que texto tão triste

:S:S

não gosto de te ver com esses pensamentos...

onde está a força que tentas a todo custo me transmitir??

Ass. RitaSousa