terça-feira

está uma criança no pátio a brincar com uma bola vermelha. sorri para a poça de água onde vê o seu reflexo, talvez pensando que é um amigo novo. está pronta a descobrir o mundo fora do portão verde que observa regularmente. ouve sons metálicos de veículos de mercadorias, sons agudos de buzinas de pesados, sons estridentes do estaleiro em frente. "vem para dentro, está a ficar frio". não há como recusar obediência a uma ordem tão suave. e mais uma oportunidade para explorar o desconhecido se perdeu. já não há bolas que preencham as horas da criança -  porque já não existe criança. finalmente consegui conhecer a avenida que separava a imaginação da realidade. mas a ingenuidade e a pouca prudência formavam uma má combinação. sentiu-se perdida num universo de objectos estranhos. deixou-se levar.

passaram-se anos.

uma prostituta deambula por aquela cidade que já nem brilha como outrora. um cliente seria perfeito para pagar o imposto de selo do carro. todos a olham com desprezo, até porque prostituição não é o céu nem sinónimo de riqueza para o comum dos mortais (vulgo humanos). contenta-se em usar malas falsificadas e vestidos (curtos) de pouco bom gosto. mas continua a lutar contra as adversidades da vida falhada que leva. não desiste. nao deixa o poste que lhe serviu de apoio quando nem uma migalha lhe enchia o dorido estômago.  também ela já foi uma criança.

passaram-se meses.

alguém morreu. não seria de estranhar, não fosse o facto de ser jovem. e por mais que se aceitasse na terra (obviamente que os roedores iriam apreciar carne fresca), não se calavam as lamentações. porque ele era isto, porque ele era aquilo. "ia à missa todos os dias, era bom moço". mas o amor da sua vida matou-o. viveu anos para ela, fez tudo por ela, e no fim não viveu o suficiente para a ver destruir mais vidas. deu tudo o que tinha, e o que ganhou? a morte. uma falsa sensação de liberdade quando a frustração o dominava por dentro. com ela tudo parecia fantástico, colorido e oportuno. sem ela, as doses massivas de dor e sofrimento apareciam. precisava de mais uma dose de amor dela. precisava de a sentir outra vez na boca. precisava de a cheirar outra vez. precisava de fazê-la correr no sangue das suas veias. morreu? que importa? era só mais um drogado que sujava as ruas. era só mais um apaixonado por cocaína. e também ele foi uma criança.

passaram-se dias.

a criança desapareceu, afinal. ninguém sabe dela. todos a procuram, ninguém a acha. mas esquecem-se de a procurar no sítio mais recôndito: dentro deles. dentro de cada um de nós está a criança que perdemos (ou pensamos que o fizemos). a criança nunca morre. as oportunidades para a deixar viver sim, falecem subitamente quando deixamos de pensar em nós.

passaram-se horas. minutos. segundos.

a criança está aqui. sussurrou um doce "amo-te" ao ouvido de quem mais precisa e voltou a dormir, que já é tarde. amanhã ela volta. a mim, a ti, a todos. ela volta.

1 comentário:

Beky disse...

afinal era mesmo sobre mim... e sobre todos os que vivem como crianças num mundo de adultos.